14 de outubro de 2009

O Marujo Endiabrado - Bestiários Breves




Patricia M.

O Comodoro Van Hyck era um mentiroso, bêbado e celerado. Eu não confiava nenhum pouco nele, mas admirava sua experiência no mar. Ele não gostava de mim, sabia das minhas histórias escabrosas, mas eu era um marujo que tinha nascido embarcado. Eu não conseguia viver em terra muito tempo. Navegava por instinto. Era o seu segundo homem no comando da fragata holandesa. A viagem até o Sul do Atlântico , pela costa brasileira foi medonha. A tripulação estava muito inquieta com alguns acontecimentos sobrenaturais e falta de ventos. Os homens embarcados são muito sensíveis as alterações do clima, aspectos das nuvens, correntes e vagalhões.
Havia uma interferência , o astrolábio e as cartas marítimas da região mantinham a posição, mas as estrêlas indicavam outra rota. Sem ventos , ficávamos ancorados em alguma baía. Era desesperador. O grumete que servia rum e as refeições ao Comodoro, avistou ao anoitecer uma sereia à estibordo. Começou a gritar feito louco, encantado. Não sei quanto tempo durou a alucinação, mas o garoto quase atirou-se ao mar em desespero. Foi impedido por dois marujos , que o surraram sem piedade. Jogaram-no no porão desmaiado.
Todos tinham medo das lendas que cercavam a região pouco explorada e da estranheza da paisagem exuberante e intocada. As sereias do Atlântico imperavam na imaginação da marujada. E os monstros marinhos dos confins do oceano na em direção a Tristão da Cunha. Para mim não havia isso. Eu sabia que o oceano sempre terminava em algum porto fedorento, em alguma taberna esfumaçada e encardida de carvão, em frente a um prato de peixes com batatas e cerveja escura e na penumbra de um quartinho imundo com algum corpo que eu mal conhecia.
Sei que nos diários de Marco Polo havia relatos de avistamentos de sereias. Mas o meu problema não eram elas, porque eu apreciava sexo com a tripulação, e preferia os garotos aprendizes. Queria corpos de homens. Fui pego em flagrante com um auxiliar da cozinha e fui encarcerado imediatamente.
Julgado sodomita pelo Comodoro, fui deixado numa praia próximo da cidade de Recife. Os marujos foram bondosos comigo, porque junto a minha carcaça destroçada, atiraram um barril de água salobra, um facão e uma frigideira velha e uma Bíblia com a capa em pedaços. Para tanto pecado no corpo, só havia uma solução: morrer naquela solidão. Tantas loucuras cometi e fiquei repetindo na praia que Deus Todo-Poderoso podia me punir da forma que desejasse. Eu era um marujo endiabrado, sem Norte, Sul, Leste ou Oeste. Sem Latitude nem Longitude. Comecei a desenhar na areia minha rota e saber onde estava. Uma praia deserta, nos trópicos, quase desmemoriado e em choque. Fui tatuado em brasa, tive os dedos esmerilhados, sem alguns dentes na boca e meio cego da surra que levei do Comodoro. Minha alma e consciência ardiam.
Achei um riacho que água doce e não sei quanto tempo fiquei lá emborcado. Desmaiei de pavor de saber que estava totalmente só. Durante dias dormi embaixo de coqueiros e improvisei uma cabana de palhas. O sol ficava cada vez mais forte e minha pele abriu-se em chagas. Eram ondas de calor que eu não conseguia aguentar. Acordava assustado, remoendo meu pecados e loucuras e invocava a Deus, que me tomasse pela mão e me levasse para o Inferno.
Passava os dias caminhando pela praia, catando sementes, atirando pedras em passarinhos, abrindo barrigas de tartarugas gigantes. Bebia água do riacho e comia peixes crus. Minha alma não tinha perdão. Queria me atirar do alto das pedras ,os crimes passavam ao largo como caravelas, os mutilados, as dezenas de corpos que degolei sem piedade. Os negros escravos que torturei sem clemência. Dos selvagens sem Deus das Terras Novas do Atlântico e Caribe, que matei sem compaixão. E também as recordações mais inconfessáveis, essas que não ouso dizer o nome.
À tardinha, vi uma ave caindo morta na minha frente: mau presságio.
Mas como já estava de partida para o Inferno, assei-a devagar na areia escaldante e comi com prazer. Deus me levou na Barca do Condenados, à noite, depois de uma febre intensa com delírios e de uma severa crise de diarréia. Na agonia, lembrei que tinha bebido sangue de uma tartaruga, animal sagrado do mar, porque me sentia muito enfraquecido.
Um coro rezava e outro gritava impropérios ao meu redor:
- Sodomita, sodomita, não vai para o Paraíso !

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