22 de novembro de 2009



Chegou Doce. A revista para quem gosta de viajar pelas baladas paulistanas


Se você é daquelas pessoas que gosta de saber o que há de novo em São Paulo, esta é a sua nova revista. Doce traz quinzenalmente o que está acontecendo no circuito paralelo nas mais diversas áreas: baladas, lugares gostosos de ir e ficar, espaços culturais, comenta o que os famosos gostam de fazer quando não estão em foco. Conta de maneira especial coisas que ninguém nunca disse. Tudo com uma dose mais que alternativa, feita por gente alternativa.

Compre logo sua revista. Doce já está nas bancas.



Revista Doce. Uma publicação da Editora Andando e Letrando.



20 de novembro de 2009

ekosistem


vento açoita o ar
cai a pétala da flor
formiga vai almoçar



Laura Fuentes

18 de novembro de 2009

17 de novembro de 2009

Cinderela Tingida


Patricia M.


Quando abri os olhos, percebi o ambiente. Eu estava desmaiada de verdade. Meus olhos procuraram o relógio de pulso na cabeceira e o abajour de gatinhos. Não vi nada disso. Deitada numa cama enorme num quarto estranho. Virei o corpo com dificuldade e havia uma mulher nua, dormindo na cama, ao meu lado. Ela ressonava baixinho e parecia estar em outra galáxia. Eu também estava nua e minhas roupas estavam pelo chão. E não estava em outra galáxia.

Posso escrever uma tese sobre roupas perdidas na hora do tesão. Porque quando a gente faz amor ou trepa com alguém, as roupas ficam espalhadas, amarrotadas e enrugadas. E esse é o tesão da história. Dá vontade de fumar na janela e tomar cerveja. Em motel é impossível, não curto esse ambiente. Prefiro sofás, chão, tapetes e camas normais.
Onde eu estava ? Onde eu estava ? De repente, o frigobar deu um estrondo e eu fiquei assustada. Eu estava num motel. Minha cabeça e meu estômago giraram com força, e quase que minhas tripas saíram pela boca. Corri para o banheiro e o jato de vômito caiu direto no espelho e na pia. Vomitei litros de bile. Estava tão zonza , que bati com a cabeça no canto da pia. Um enjôo violento. Estava sem nenhuma coordenação motora.
Gemi de dor bem alto e morri de medo de morrer alí naquele cubículo gelado. Banho !
Não, nunca tinha visto aquela mulher que dormia , semi-desmaiada.

Só lembro da madrugada, entrei na Lôka com um amigo para dançar até cair e só.Girei , rodopiei, dancei, suei, tomei um comprimido, bebi montes de drinks infernais. Acordei no motel com uma mulher desconhecida. Chequei a mochila: carteira com RG, dez reais , batom , espelho, carteirinha de cinema , caixa de coloração para cabelo da L'Oreal , chicletes, mp3 , celular com pouca bateria e o livro da faculdade para trabalho, Ana Karenina. Uma roubada a história, setecentas páginas. A coitada se mata por causa do Conde. Mas começa numa levada tão boa e verdadeira que não consegui parar de ler.
Todas as famílias são parecidas entre si, as infelizes são infelizes cada uma a sua maneira. Nada mais certo, não é mesmo ?


Na recepção disse que estava no quarto 703 e que a moça pagaria a despesa.
O rapaz com cara de sonado, olhou no computador e disse:
- Ela já pagou.
Minha cabeça começou a doer novamente, e me senti muito fraca. Acho que foi o choque com a cabeça na pia. Vai nascer um galo.
- Você pode me dizer onde eu arrumo condução prá chegar no centro da cidade ?
- Na rua de trás passa um ônibus que vai até a Barra Funda. Você pode pegar o metrô ou ônibus.
- Valeu, cara.

Quando cheguei na casa da minha madrasta eu estava quase desmaiando. Entrei na cozinha e aquele cheiro de comida e temperos embrulhou meu estômago. A minha madrasta olhou meus cabelos molhados e soltou:
- Puta vadia ! Lésbica sem vergonha !
Ela sempre me chamava disso e tentava me bater. Eu sempre fugia. Mas desta vez levei um tapão. Ela enchou a mão e eu não saí do lugar.
Eu estava bem atordoada , mas voei para cima dela e a soquei até ela cair. Meu pai apareceu não sei de onde e entrou no pugilato. Dois pratos e uma vasilha foram para o chão. Ele me defendeu
da fúria da madrasta. Daí , ela me esqueceu e foi para cima dele. Ele ameaçou quebrar a tv de LCD 42 polegas novinha. Minha madrasta me xingou até cansar e ameaçou-o de cadeia Foi para a Delegacia e fez um BO contra o meu pai. Agressão. Minha família é foda de ruim. Meu pai me adora, sou filha única. Minha mãe morreu quando eu tinha 4 anos. Sou uma peste encantadora.
Minha madrasta, como já falei , me odeia. Sou uma lésbica pecadora.
Fui para o banheiro me olhar. O mapa do inferno. Cabelos precisando de tinta, corte e hidratação. Uma Cinderela que perdeu o sapatinho na Lôka. Lembrei do livro do Tolstoi e fui pra cama tentar ler mais sobre Anna e sua dor e tentar dormir um pouco.

13 de novembro de 2009

Morte

No meio da calmaria havia uma tormenta que me consumia. A imagem plácida escondia um turbilhão que viria à tona a qualquer momento. Eu deveria passar por aquilo de toda maneira. Era a única direção. Remando em águas claras, mas barrentas, aquele que me guiava cantarolava em meus ouvidos canções ternas que prenunciavam a morte. Era meu moço, que me levava ao meu destino, como havia feito com tantos outros que já foram. Agora chegava minha vez. Vestida de luto, aguardava passivamente meu fim. A margem do lado de lá estava à minha espera. A paisagem serena fixando barquinhos vazios que aguardavam outras sortes espreitava minha angústia. E a vida tinha passado.

Por Patricia Cytrynowicz

12 de novembro de 2009

Doce alegria

No início foi fruta
Tirada do pé
Carregada nos cestos
Lavada com esmero
Picada


Foi massa apurada
Puxada no açúcar
Num tacho antigo
Areado no açude
Distante

Foi conteúdo
De boião emprestado
Limpo e etiquetado
Com escrita
Nenhuma

Foi carga de mula
Puxada no arreio
Pelos cinco garotos
Até a cidade
Vizinha

Comprei há pouco
Na calçada, na rua
Não por muito
Dinheiro

E virou mantimento
Virou alegria
Doce e alegria
Ao mesmo
Tempo

Deborah Panachão

Da glória ao inferno pessoal


Mulheres que toda vida foram muito bonitas têm maior probabilidade de envelhecer mal. Esse é bem o caso de Fernanda Terremoto, que integrou o primeiro cast de bailarinas da Buzina do Chacrinha, o primeiro programa na televisão do Velho Guerreiro, e que resolveu agora, aos 69 anos, contar suas memórias em O massacre do ego – confissões de uma ex-chacrete (Editora Plumax, 190 páginas, R$ 29,00) que vem na esteira dos 20 anos da morte de Abelardo Barbosa.

Nele, a mulata do tipo arrasa quarteirão conta do deslumbre de ter conquistado o país com suas curvas e a expressão sexy nos cerca de cinco closes a que tinha direito toda noite de quinta por quinze anos a fio, mas fala também da queda e do inferno pessoal que se iniciou ao ser despedida em 1970, quando o programa passou a chamar-se Cassino do Chacrinha e a produção reformulou parte do elenco.

De tom confessional, a primeira parte do livro, limita-se a contar o esquema de exploração a que essas garotas eram submetidas, tendo que cumprir programas previamente agendados com fazendeiros, empresários e políticos durante as viagens da Caravana do Chacrinha Brasil adentro, mantidas em esquema de semi cativeiro, e proibidas de manter relacionamentos fixos. Até aí nada de novo, isso já havia sido fartamente exposto pela imprensa e, disso, não há queixas no livro. Muito se falou já sobre as garotas que atuavam com os codinomes Daisy Cristal, Érica Selvagem, Esther Bem-Me-Quer, Fátima Boa Viagem, Garça Dourada, Graça Portellão, Índia Poti, Leda Zepelin, Loura Sinistra, Regina Polivalente, Rita Cadillac, Roseli Dinamite, Sandrinha Radical, Sarita Catatau, Sueli Pingo de Ouro, Valéria Mon Amour, etc. Como elas, Fernanda aceitou o esquema que lhe propiciou construir um pequeno patrimônio.

É na segunda parte do livro, contudo, que a autora traz algo de mais genuíno ao relatar o inferno por que passou quando tentou lidar com a profunda depressão provocada pela súbita e inesperada demissão do programa. Nem o casamento com um rico importador de frutas nissei conseguiu tirá-la da apatia, e ela simplesmente não soube lidar com o fato dos convites para eventos irem rareando assim como o reconhecimento nas ruas. Em pouco tempo, Fernanda foi da glória ao ostracismo absoluto.

Na época, próxima dos 40 anos, vendo na tela o novo time de chacretes composto por garotas bem mais jovens do que ela, ficou obcecada em manter a juventude a qualquer preço e então nas décadas seguintes submeteu-se a uma seqüência de intervenções cirúrgicas que lhe desfiguraram a face a ponto de não ter coragem de sair de casa. Recusava-se a ter filhos para não comprometer a forma física, e isso, aliado à depressão e aos ataques de mau-humor, acabou com o casamento.

O divórcio contribuiu ainda mais para a piora do estado emocional, a ponto dela nem mesmo conseguir manter as amizades. Completamente só, com as economias dilapidadas por tantas cirurgias que se seguiam na tentativa de corrigir os erros das anteriores, tudo o que ela conseguiu foi comprar uma chácara no interior de São Paulo, para onde se mudou com a fiel empregada, na tentativa de se esconder do mundo, limitando-se a sobreviver das poucas economias.

Foram anos de clausura e medo da luz solar. E somente agora, aos 69 anos é que Fernanda parece que conseguiu serenar o terremoto e ter distanciamento suficiente para contar de forma pungente e sincera a sua trajetória que pode servir de alerta para muitas mulheres cuja identidade apóia-se unicamente na beleza física. A ex-Chacrete não se permite fotografar, fotos só as dos áureos tempos. Nem se mostra com o nome verdadeiro. Conta a lenda que é Maria das Graças dos Santos. O importante é que, embora tardiamente, ela compreendeu que a graça de ser mulher também se revela por meio das rugas e dos efeitos da gravidade, e é aí que reside a beleza deste livro que pode servir de alerta a muita gente.


Martin Lourenço, especial para a Revista Terracota

Papo Família


– Minha tia faz igualzinho!

– Sério?

– Sério. Teve um dia num velório aí, nem lembro de quem, e ela não conseguia parar de rir. “Meu pêsames” aqui, “Minhas condolências” ali e ela lá, fazendo mais barulho tentando não rir do que realmente rindo.

– Mas ela ria por quê?

– Acho que é o jeito dela de lidar com o nevosismo. Ou alguém fez um comentário maldoso a respeito do falecido. Ou da viúva. Sei lá.

– É sempre assim, né?

– É...

– A batata está boa?

– Está uma delícia. Quer?

– Não, valeu.

– Eu normalmente não como batata frita. Só quando minha vó faz.

– São boas?

– Nossa, se são! Sabe aquelas que vem no saquinho? Aquelas, que a gente compra no mercado e deixa no freezer. Crocante por fora, macia por dentro, sabe?

– Sei.

– Não chega aos pés da batatinha da minha vó.

– Eu gosto dos bifes que minha vó faz. Meu pai diz que minha mãe não faz bifes. Diz que ela comete bifes.

– Ai, que maldade!

– É sério! Ela consegue estragar até filé mignon. Não sei, ela tem uma capacidade monstruosa de estragar pedaços de carne. Sorte que não é hereditário. Daí, olha só, ela foi e contratou uma cozinheira que conseguia ser pior que ela! Um dia comprei um medalhão de picanha e pedi pra ela preparar. Quando sentei na mesa ela tinha martelado tanto o pobre bife que dava pra enxergar através dele!

– Mentira!

– Juro. Daí pedi pra minha vó me ensinar a fazer os bifes como os delas. Não consigo fazer igual, mas fica bem decente.

– Minha vó também tentou me ensinar a fritar as batatas. Só que as minhas ficam uma porcaria. Mas faço uma salada boa.

– Salada?

– É. Que é que tem?

– Nada.

– Fala.

– Esquece.

– Você vai ver. Um dia a gente vai no sítio do meu tio e você faz a carne e eu faço a salada.

– Teu tio tem sítio onde?

– Em Ibiúna.

– O do meu tio é em Itapetininga. Faz tempo que não vou lá. Só ia quando era moleque.

– No do meu tio ou vou de vez em quando. Mas estou indo menos. É tudo sempre...

– … o mesmo papo. Não é? As mesmas piadinhas. Tenho um tio que sempre que me vê pergunta se eu já comecei a bater punheta... Desculpe.

– Não, tudo bem. Sempre que vou visitar minhas tias elas me perguntam quando é que eu vou casar... Desculpe.

– Relaxa. É chato isso, né? Toda essa...

– Toda essa felicidade. É. Bem chato. Parece que eles chegaram num patamar pequeno burguês ideal e acham que todo mundo tem que seguir a mesma fórmula. Não conseguem entender que a fórmula de felicidade deles pode não dar o mesmo resultado com todo mundo. Eu não quero esse negócio de casinha feliz, cachorro de raça, dois ou três filhos, árvore de natal...

– Vocês fazem natal em família também?

– Afe, nem me diga. Véspera de natal é o pior dia do ano.

– As tias dando ordens da cozinha, os tios enchendo a cara na sala...

– Bate boca, primos ranhentos, futebol, novela, Faustão...

– Roberto Carlos, Xuxa, e, claro...

– Missa do Galo! O que é que as velhas querem tanto com aquele Papa? E ficam pedindo silêncio, pois o locutor narra tudo sussurrando, como se estivesse dentro da igreja...

– Missa com locutor! E lá vem o coroinha, penetra o altar, carrega a taça, passa ao bispo um, que passa pro bispo dois, que dá uma jingadinha e passa para o Papa que pega, levanta e... É BÊNÇÃO!

E a velharada vai à loucura! Nesse ponto as tias estão cansadas e começam a beber e a reclamar.

Reclamar dos maridos. É a hora da fofoca. É a hora de falar mal dos que não vieram. Contar os podres de quem não pode se defender.

– É tudo igual, né?

– É...

– Quer mais uma cerveja?

– Quero.

– Como é aquela frase mesmo? Aquela do Dostoiévski. “Todas as famílias são iguais...”.

– “Todas as famílias felizes se parecem entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”.

– Essa mesmo.

– Não é do Dostoiévski. É do Tolstoi. Anna Karenina.

– Ah, é tudo russo. Mas é bem isso, né? Parece que toda família tem a mesma biografia, os mesmos personagens. Pura hipocrisia! É tudo uma camada de glacê num bolo de esterco! Não entendo por que a gente tem que gostar da família obrigatoriamente. A gente não escolhe nem os irmãos que vai ter. Que o diga tios, tias, primos... Que foi?

– Não, nada. Desculpe.

– Fala. Você estava pensando em alguma coisa.

– É que... Bom, não costumo falar sobre isso.

– Fala, vai. É algum podre?

– Meu tio. Marido da minha tia.

– Que é que tem?

– Ele já foi preso.

– Sério?

– Sério. Por agressão e atentado ao pudor.

– Ah, mentira!

– Ele chegou bêbado um dia em casa. Derrubou tudo o que tinha no caminho pro quarto. Quando tirou a roupa e deitou deu de cara com homem na cama. Ele levou um puta susto. Já pensou merda e saiu socando. Foi aquele fuzuê. Maior baixaria.

– E sua tia?

– Então, no final ERA minha tia que ele trombou na cama. Ela tinha cortado o cabelo bem curtinho, que nem aquela mulher da novela, sabe? Ela ia mostrar quando ele voltasse do trabalho, mas ele ficou bebendo com os amigos até tarde. Daí ele...

– Ai, meu Deus!

– Escuta! Daí ele saiu batendo. Deu uns bons socos na minha tia, que saiu correndo. Foi até a rua e começou a gritar por socorro. Meu tio estava tão bêbado que não estava nem aí. Saiu descendo o braço. Ai, meu Deus, isso não é engraçado...

– Claro que é! E aí, rolou a maior baixaria?

– Maior baixaria! Meu tio, quando chegou na luz, acho que reconheceu minha tia, mas estava tão fora de si que misturou tudo. Batia nela como se estivesse batendo nele, mas ficava xingando-a de vagabunda, piranha, essas coisas.

– Nossa...

– Pior: ele estava só de cueca! No meio da rua, esbofeteando a mulher, xingando-a de tudo quanto é nome, só de cueca! Não demorou muito pra chamarem a polícia.

– E sua tia?

– Ela deixou ele ficar preso por dois dias. Depois ficou com pena e retirou as queixas. Mas o casamento não durou muito depois disso. Esse meu tio era um safado. Ficava botando as sobrinhas no colo só pra ficar bolinando. Quando minha tia ficou sabendo disso brigou com toda a família.

– Ela não acreditou?

– Até acho que acreditou. Mas ela não queria se divorciar. Tivemos que aturar os dois discutindo por alguns anos ate eles finalmente se separarem. Toda reunião de família terminava com os dois lavando a roupa suja na frente de todo mundo.

– Ele fez com você?

– O quê?

– Te botou no colo e ficou te bolinando?

– Ah, fez. Várias vezes. E ficava falando baixarias no meu ouvido também. Na época eu não entendia nada. Parecia que ele estava fazendo alguma brincadeira, sei lá.

– O primeiro seio nu que vi na minha vida foi de minha prima.

– Como é?

– A gente estava brincando de “verdade ou desafio”. Eu era moleque de tudo. Minha prima tem quase a minha idade. Mas já tinha, sabe...

– Peitinhos?

– É. daí eu perguntei pra ela “Verdade ou desafio” e ela: “Desafio”. A gente tava meio brigado, nem lembro porque. Queria fazer uma coisa que a deixasse envergonhada. E ela estava toda orgulhosa que já usava sutiã. Ficava se fazendo de madura, sabe? A gente estava no quartinho dos fundos da casa dela. A gente e uma galerinha. Nem pensei duas vezes: “Mostra os peitos!”. A galera vibrou. Ela era a única menina na turma. Ninguém ficou do lado dela. Ela sabia que se não cumprisse o desafio seria expulsa da brincadeira. Tentou barganhar. Tentou diminuir a pena. “Só o lado”. Rapidinho. Mas quanto mais ela se defendia mais a gente colocava regras. No final concordamos em só um dos peitos, mas por dez segundos inteiros. E ela foi lá e pimba, mostrou. A gente ficou que nem besta. Ninguém lembrou de contar o tempo. Daí, na mesma hora, minha tia, mãe dela, chegou.

– Puta merda!

– Imagina a cena: eu, um monte de moleque e minha prima, com um peito de fora. Minha tia ficou puta. Fez um baita escândalo. Deu o maior auê na família. Até hoje não posso chegar perto de nenhuma prima minha que já me olham como se eu fosse um tarado... Tá achando engraçado, é?

– Desculpe!

– Mas no fundo acho que minha prima gostou da experiência. No fundo ela curtiu saber que seus recém adquiridos atributos já eram notados. Claro, ela nunca me disse isso, mas não a vi chorando nem se arrependendo. Nunca mais falamos no assunto. A família rapidinho jogou o glacê em mais essa camada de esterco. Um brinde a essa família perfeita!

– Um brinde!

– Você fica linda sorrindo.

– Ai, adoro essa música! Vamos dançar?

– Claro.


Por Alexandre Heredia

O BOM GOURMET VOLTOU!


O renomado psiquiatra Hannibal Lecter lança em dezembro seu segundo livro de culinária Cooking with the Doctor.

Grande apreciador da culinária exótica, o Dr. Lecter publicou em 2001 How to Cook Your Loved Ones, sucesso de vendas na livraria virtual Barnes and Noble, com mais de oito milhões de cópias vendidas.

Nascido na Lituânia em 1933, Lecter e sua jovem irmã Mischa tornaram-se órfãos em 1944. Momento em que, por necessidade, assumiu as obrigações culinárias da família.

Os pratos criados para o livro possuem em sua maioria influência da cozinha européia mediterrânea. O vinho ideal para acompanhamento, o Chianti.

O doutor sempre tem as melhores receitas. Destaque para o delicioso cerveau d’homme vivent. Um favorito desse colunista.

A versão em Kindle é prometida para o início de 2010.

Bon apetit!

Ricardo Delfin

Serviço:
Livro: Cooking with the Doctor [em inglês]
Autor: Hannibal Lecter
Editora: Brain Scan
Preço: US$ 29,99 [capa dura] – US$ 9,99 [Kindle]
ISBN-10: 0099297701
ISBN-13: 978-0099416838

11 de novembro de 2009

Travessia

O barco cruzou meu dorso.

De tantas, guardo essa história nas profundezas da memória. Certa mulher perdeu o Amor. Desconsolada, caminhou com as estrelas à sua procura. Entre asfódelos o reencontrou. Contudo, nos vastos campos, conheceu o poeta, e dividiu o amor. Às noites, meu leito foi vereda para seus romances. Pois, o Destino a chamou para a última travessia. E dividiu com o poeta o círculo das tempestades.

E o Amor conheceu a solidão.


Ricardo Delfin

O DIA EM QUE A TERRA PAROU


Baseado em fatos reais, a narrativa em primeira pessoa retrata um dos dias mais sombrios da raça humana: o dia em que a Terra parou de girar. Em dezesseis do seis de dois mil e dezesseis, o planeta Terra sofreu um colapso jamais visto, que é aqui tratado com brilhantismo pelo escritor Roman Schablinski, que ficou conhecido na mídia e alcançou fama e sucesso com romances como A ROSA E O CAIBRO, A RAPOSA E A VULVA e CAI A NOITE, MORRE O DIA.

Schablinski viajava de Roma para uma Conferência em Istambul pela Bull Airways quando todos, tripulantes e passageiros foram surpreendidos por uma inquietante calmaria seguida por uma desconcertante e inexplicável alteração nos instrumentos da aeronave, com direito a pane dos motores. Era como se todos estivessem a bordo de um planador, e de fato estavam, só que o curso dos acontecimentos ia contra qualquer indício de realidade, afinal, como um avião com aquele tamanho e tonelagem conseguia planar como uma asa delta, e com 316 passageiros tomados de espanto?

Partindo dessa obscura fonte de realidade, o autor descreve os momentos que se seguiram e nos quais ele próprio foi testemunha daquilo que convencionou chamar de “o acontecimento mais bizzarro, desconfortável e ao mesmo tempo mágico que a espécie humana já experimentou”. Em versões para áudiobooks, blindbooks e mutebooks, além é claro, das versões convencionais impressa e kinderegg, O DIA EM QUE A TERRA PAROU já vendeu mais de 175 milhões de cópias em cerca de 445 países, incluindo a China Comunista, onde ler é proibido e um exemplar do livro chega a custar 800 trilhões de Iens (cerca de cinco mil dólares).

Com prefácio do escritor brasileiro Paulo Coelho, o que certamente ajuda muito a alavancar a vendagem, O DIA EM QUE A TERRA PAROU é um dos marcos da literatura pseudo contemporânea que muda para sempre o modo como as pessoas enxergam a vida, o banho de mar e o suco de laranja.

O DIA EM QUE A TERRA PAROU
Autor: Roman Schablinski
Editora: Maio Books.
Págs: 2016 – Preço : US$ 116,00

[Marcos RoMa]

10 de novembro de 2009

O jardim sem nome






" Esse jardim é feio e brutal. Vai ferir a pureza da praia".

Assim destacou em artigo virulento, o advogado, poeta e ensaísta Vicente de Carvalho, na sua coluna do Jornal A Tribuna de Santos de 1924. O poeta defendia que a construção de um jardim na orla da praia seria uma aberração e manifestou-se em carta ao Presidente da República, Epitácio Pessoa, que impedisse que o projeto fosse em frente. O jornal rival, Gazeta do Povo , porque naquela época Santos gozava de vozes que eram dissonantes e polêmicas, abriu fogo em editorial de página inteira, apoiando a ideal de um jardim litorâneo, com a praia protegida de "especuladores ricos" que pensavam em construir residências de luxo no local.
A população começou a acompanhar com muito interesse e foi até para as ruas , manifestar apoio ou repulsa. E foi como um rastilho de pólvora. Manifestantes contra a posição do Jornal A Tribuna atearam fogo ao prédio. Mesmo assim, a obra prosseguiu e a curiosidade é que apesar de já ter sido incluído na lista do recordes do Guiness Book, o jardim litorâneo de sete quilômetros não tem nome. Não foi batizado.
Não sei qual foi o engenheiro que imaginou e fez o traçado sinuoso. Mas os registros fotográficos são abundantes. Ninguém sabe quem iniciou a semente do jardim, que disputa a paisagem de uma baía fechada e de entornos simples e tímidos. Eu imagino o início suarento da obra, os trabalhadores simples, unindo as pedras sob o solo arenoso, nunca encaixe perfeito das pedras vermelhas, cinzas, brancas. Numa eterna onda. E o sol ? E aquele vento que bate lá, o Noroeste, brutal e pegajoso. Foram dias difíceis para os homens que não sabiam onde o jardim chegaria ou se acabaria um dia o encaixe das pedras.
Do outro lado da avenida, os homens de terno, chapéu e gravatas olhavam desconfiados para o jardim que nascia. Diziam que as árvores plantadas alí impediriam a visão oceânica, com aqueles chapéus de sol, árvores da Serra do Mar e plantas exóticas. No pensamento , a primeira maré cheia violenta arrastaria todos os ornamentos. Um prejuízo terrível. Os admiradores da obra, afirmavam que valeria a pena ter um jardim tão imenso, vaidade provinciana decerto, mas que levaria a cidade a se destacar das outras cidades litorâneas importantes.
Foi inaugurado com pompa, e afinal , ganhou o amor dos cidadãos que enchem o peito quando falam dele. O jardim não foi batizado, não tem nome - mas está sempre lá, sinuoso, intocado , com uma estátua do poeta Vicente de Carvalho de costas para ele. Maldição.


Homenagem a Vicente,
um nome para o Jardim



Pombas asquerosas e passarinhos vagabundos
fazem companhia hoje em dia a Vicente
Um poeta da terra do jardim sem nome.
Vicente não vivia em Sodoma mas virou estátua de bronze de costas para o mar,
como uma maldição.
Mão enfiada no bolso da calça de forma displicente e na outra mão, um livro de poemas franceses. Um ornamento sem voz, sem aquela alma bravia do estrondo que agora comove-se com a melancolia do por-do-sol. Mistura-se aos cachorros de raça, pequenos traficantes e desocupados. Caminhantes atléticos em busca do corpo perfeito , concentrados nas suas pernas e pés não sabem quem é Vicente, nem querem saber. Da estátua do poeta petrificado, só resta uma sombra, onde descansam um cão e seu dono.




A propósito, Vicente de Carvalho é meu tataravô*. Ele, ao contrário do texto, apoiou o movimento que tornou as praias de Santos , patrimônio público e não se tornasse um conjunto de casinhas à beira mar. Conseguiu a proeza em uma carta ao presidente da época. Com isso , foi projetado o jardim de Santos.
Vicente Augusto de Carvalho, nasceu em abril de 1866 e faleceu em abril de 1924. Portanto muito antes do início da construção do famoso jardim, que já estava em semente.
Um poeta que protegeu o mar e a praia.
Esse jardim podia se chamar Vicente.

9 de novembro de 2009

Xadrez da morte

Ao entrar no Piolin, estranhei que o Marçal Aquino não estava sentado à mesa habitual, em frente à janela que permite uma boa visão da eclética turba noturna do Baixo Augusta, de onde ele adorava observar as pessoas e se inspirar para criar seus personagens. A princípio achei que ele ainda não houvesse chegado, mas logo o avistei no fim do corredor, um tanto soturno, meio escondido em uma mesa do canto. Depois dos apertos de mão, dos tapinhas nas costas, dos tudo-bens e de todos esses etcéteras da convivência humana, sentei e percebi que ele já estava na segunda dose de cachaça. Parecia muito perturbado, nervoso por algum motivo que eu não suspeitava.

Até fazermos o pedido, falou muito pouco, nem sequer comentou sobre algum dos escritores russos que ele sempre estava lendo. Tomamos uma cerveja, duas. Silêncio. Realmente algo estava muito errado, eu nunca o vira assim. O Marçal sempre foi bem-humorado. Será que estava bravo por eu ter chegado atrasado?

Na hora em que o prato foi servido, perguntei se ele estava bem e por que havia me convidado assim tão em cima da hora para ir jantar lá. Ele só me olhou estranho e perguntou: "Você ainda faz traduções do sueco?" Respondi que sim, que aquele era meu meio de sobrevivência. Então me encarou, tomou coragem e tirou de sua bolsa uma caixa de madeira. "Toma. Traduz e me liga assim que terminar." E saiu, olhando para todos os lados, como se temesse estar sendo espionado. Fiquei perplexo, com um fettuccine alfredo inteiro pra devorar sozinho e um misterioso objeto de madeira a me instigar a imaginação.

Eu estava com muita fome, mas não resisti e abri a caixa, em cuja tampa reconheci alguns caracteres rúnicos. Dentro, um livro amarelado. Não tinha capa, já começava com a folha de rosto, onde se liam apenas o título em sueco, Döden Schack, e o nome do autor, Johannes Bureus.


  Retrato de Johannes Bureus, 1627.

Para mim, aquilo não dizia nada. Eu não conhecia o autor nem a obra. Döden Schack, numa tradução ao pé da letra, seria O xadrez da morte. Pensei em folhear aquelas páginas e tentar descobrir alguma informação mais esclarecedora, mas elas estavam tão empoeiradas que fiquei com medo de que o garçom viesse me censurar por sujar a toalha. E como não consigo pensar direito de estômago vazio, decidi jantar primeiro.

Nunca fui muito de acreditar em sincronicidade e sempre detestei esse lado quase místico de Jung. Ora, seria muita ingenuidade pensar que certas coincidências do dia a dia pudessem ser algo mais do que coincidências e estar conectadas entre si de maneira acausal segundo certo padrão de acontecimentos significativos. No entanto, tive que mudar de ideia depois que meu celular tocou, na hora em que eu ia começar a comer. Era o Edson Cruz. Havia me ligado para saber se eu tinha lido seu novo poema no Sambaquis. Encarando o fettuccine e o livro à minha frente, faminto pelo primeiro e intrigado pelo segundo, fui até mal-educado com o Edson e respondi "poesia numa hora dessa, pô!" Sem lhe dar tempo de reagir, fui logo contando do Marçal e do estranhíssimo livro que eu teria que traduzir. Fiquei muito mais confuso quando o Edson, sempre tão sereno e lúcido, me interrompeu e começou a falar atropeladamente sobre o novo poema, "Nuvens negras". O tema era a morte, e a imagem que o Edson escolhera para ilustrar o texto era uma cena de O sétimo selo, filme que o Ingmar Bergman havia feito em 1956 depois de ter lido e estudado profundamente o ‒ e o Edson parou para respirar e enfim dizer ‒ Döden Schack. Não entendi nada. "Que história é essa, Edson?" Ele ficou eufórico e disse que já estava saindo de casa para me encontrar no Piolin.

Isso que dá ter amizade com escritores, pensei, enquanto comia a massa já fria. Um mais esquisito que o outro. O que o Marçal, um cara que sempre escreveu uma prosa mais realista, suburbana, tinha a ver com um livro sueco que, à primeira vista, me parecia sobretudo místico? E o Edson, que foi entrar na história só por ter ilustrado um poema com uma imagem do Sétimo selo? Nada daquilo fazia sentido. Era melhor eu esperar aquele doido chegar para me esclarecer.

O Edson demorou mais de uma hora. Disse que precisou fazer umas pesquisas e encontrar uns papéis que guardava havia alguns anos. Jogou uma pasta em cima da mesa e ligou o notebook. Quando ameacei abrir a caixa para lhe mostrar o livro, ele, com um olhar que me pareceu apavorado, disse que não fazia questão de ver o original. Quando a tradução ficasse pronta ele leria, já que não sabia nada de sueco.

Primeiro ele mostrou uma notícia recortada da Folha de S. Paulo do dia 17 de agosto de 2003. Era sobre a morte de Haroldo de Campos. Trazia apenas a causa da morte ‒ falência múltipla de órgãos ‒, uma breve biografia, as obras mais famosas, comentários de amigos, esse tipo de coisa que sempre vemos no obituário de gente importante. Uma informação estava grifada, acredito que pelo próprio Edson:

Na noite em que foi levado para o hospital, Campos trabalhava na tradução de um livro escrito em sueco. Nem o livro nem a tradução foram encontrados em sua mesa de trabalho. O irmão Augusto notou apenas uma coisa estranha: sobre a mesa havia um tabuleiro de xadrez, e as peças remanescentes estavam dispostas numa posição que revelava um iminente xeque-mate contra o rei branco.


Da pasta, Edson tirou o xerox de um artigo em espanhol escrito por um certo Pierre Menard, sobre "a possibilidade de enriquecer o xadrez eliminando um dos peões de torre". Achei entediante a leitura, até porque o autor, no final, rejeita a própria sugestão. O curioso, no entanto, é um comentário na página 13 que Menard faz do livro El ajedrez de la muerte ‒ o Döden Schack. Diz que existia apenas um exemplar em todo o mundo, que circulava somente entre os associados da Ordem dos Enxadristas do Caos. Escrito pelo místico sueco Johannes Bureus, o livro era um tratado sobre como o estudo das runas influenciava o raciocínio dos jogadores de chaturanga, jogo que deu origem ao xadrez. Mais importante, no entanto, era a descoberta de Bureus: uma jogada conjunta entre o cavalo e o bispo branco cujo movimento final, chamado de dämonem, seria uma espécie de anticheque-mate ‒ se a estratégia desse certo, o jogador das peças brancas não só venceria a partida, como também daria cabo do jogador das peças negras: a própria Morte, que se personificaria no corpo do oponente no momento em que a jogada se concretizasse. Neste caso, o enxadrista branco se tornaria imortal. Por outro lado, caso perdesse, seria imediatamente levado pela Morte.

Li aquilo em meio a alguns copos de cerveja, para tentar me convencer de que tudo era mesmo verdade. Como eu parecia incrédulo, o Edson me mostrou um vídeo na internet, um depoimento de Bergman a respeito dessa obra. O cineasta deixa claro que Johannes Thomae Agrivillensis Bureus e seu Döden Schack realmente existiram, e que ele próprio, Bergman, se inspirou no livro para compor o personagem da Morte em O sétimo selo. Ele confessa que só sobreviveu porque jamais foi um bom enxadrista, portanto, não quis arriscar a vida em uma partida com a morte. Mas ele não revela como o livro foi parar em suas mãos ou como seria a jogada final, cujo nome, dämonem, ele demonstrou por meio de anagramas. Segue abaixo o vídeo para que ninguém tenha dúvidas disso.





"E então?", me perguntou o Edson. Eu não sabia o que pensar, o que fazer. Tudo era inacreditável demais, mas sem dúvida havia uma relação perfeitamente plausível entre o que disseram Bergman e Menard a respeito de Johannes Bureus. E havia a prova material: a caixa à minha frente. Além disso, acabei me lembrando de um dia em que o Marçal Aquino me havia contado sobre uma visita que tinha feito ao Haroldo de Campos na noite em que o poeta foi para o hospital. Tudo se encaixava. Eu tinha em mãos algo enigmático, porém verdadeiro e valioso. Era minha chance de finalmente aparecer no cenário editorial com uma tradução relevante. Com o incentivo do Edson, peguei a caixa e fui embora, começar logo esse trabalho que me consagraria.

Agora estou em meu escritório, postando esta mensagem de blog antes de começar a tradução. O livro está aberto sobre a mesa, junto com dicionários, gramáticas, obras de referência. E, é claro, um tabuleiro de xadrez. As peças brancas posicionadas do meu lado. Dentro de algumas horas eu publico o resultado da partida aqui no Escritores na Oficina.

Eduardo Sigrist

5 de novembro de 2009

NAVEGAR É PRECISO. AFUNDAR TAMBÉM.

Eu remava há horas naquele lago sem que meus olhos avistassem a margem. Meu remo, de três metros ao partir, agora media uns vinte e sete centímetros de acordo com minha matemática de estivador. Ela, linda e soberba, apenas lia e escrevia sem parar naquele diário infernal. Nenhuma palavra. Nenhum movimento em minha direção. Nenhum cantinho de pernas aparecendo sob o vestido com cheiro de jasmim. O calor sufocante talvez a impedisse de falar. Era esse o motivo de seu silêncio de colibri. Eu nem sabia mais se estava indo ou voltando. Eu nem sabia mais se eu era um remador, um estuprador, um marido traído ou um fugitivo.

Mas do que eu fugiria? Da morte? Do desejo? E ela, porque fugia? Por ser sereia? Sereias não falam, nós sabemos disso. Elas cantam. Mas só os que sobrevivem podem contar. Remar não dói. O que machuca meu coração mais que minhas mãos é fazer parte da paisagem sem ser notado por ela. De novo: porque ela se cala? Estaria escrevendo um livro e por isso não falava, a fim de economizar palavras para colocar na história? Talvez ela estivesse escrevendo sobre nós. Sobre mim. Uma sereia que escreve, e deve saber nadar. Enfim, isso tudo é enfadonho demais para um remador. Eu paro por aqui. O barco está a fazer água no meio do lago. Os outros barcos nem ligam. Se ela for sereia mesmo, vai saber nadar. Se não for, vamos afundar juntos neste lago sem margem. Afundemos portanto. Lá vem ela.

[Marcos RoMa]

(...)

Tristeza se passei foi apenas enfado do deus do diabo, porque ele tem um. E um daqueles que não descansa, dança. Tô triste não. Tô interlúdio, passagem de tempo que flui, e ui de mim se destrato a alegria que ão vocês todos e o jogo biogo de se ser. Feliz Tô, assim com Tsão, por amando ser amado e amo os amados de mim também sem ponto e nem vírgula.

Dores do céu, de um riso solto, de um jeito sem que, da vez que se diz sem voz, talvez nem sei, talvez coisa nenhuma, pensante, destoando, sem sim, apenas som, pois é nem, sabe?
Dia assim, desconexo, exo, dis forma que sobra, coisa alguma diz. Diz. e de dizer nem fala e de saber nem salva, nem sombra nem ora.

(...) Só o teclado o que teclei e foi. Deu uma fadiga que não liga, não diz nada e daí o que se lê acima.

JC. (Temática)

HAICAI

Salamandra sem rabo
rabo
espera

JC.

ZIM

ZIM!

- Põe a cabeça pra fora!

- Não!

- Põe!

- Não, já disse!

- Teimosia essa a sua!

- Faço o que me dá na telha.

- Telha coisa nenhuma! Cabeça confusa, isso sim! E sai de perto de mim!

- Impossível! Assim eu morro... Sem você. E você também morre sem mim. He! He! He!

- Peste! Praga! Simbiose maldita a que me encalacra aqui. (pausa) Ai, não era pra ser assim!

(Pausa)

- Arrependido?

- (!)

- Se abre comigo! Pode falar!

- Me deixa!

- Vou dizer uma coisa: Gosto desse amál... como é mesmo?... Amalagam... Amalgamam... Iche!

- Amálgama!

- Isso! Amálgama! Meio gelatinoso, mas me gusta! He! He! He! Muitos preferem a ponta do dedão do pé, das mãos... O nariz então! Eu não! Gosto de um buraquinho! Podia até ser a ventosa, mas a orelha tem o espaço certo. E ainda me dá eco. Aqui me deleito. Faço e desfaço.

- Tô te ouvindo. Mas, você podia me deixar. Me deixa!

- Não dá, tenho filho pra criar.

- Então tenha suas crias e me deixa.

- Não tem mais serventia essa carcaça sua. Não pra você! E mais: Tá fazendo alarde onde não cabe. Sua cabeça já quase era. O resto só fede e definha. Você nem é mais isso. É pensamento desgarrado, mosquitinho chato que só quer me atazanar.

- Hei! Não inverte, não! Mosquito é tu! Quem nasceu assim foi você!

- Tem nada de inversão. Se enxerga! Olha onde você tá! Agora quem zumbe não sou eu. Tenho voz. Melhor: Estou ficando voz. E vou me desmosquitar. Seu baú vai me transformar.

Falou das minhas crias, não foi? Pois saiba que essas larvinhas, miudinhas, branquinhas... Bem, não tão branquinhas. Mas que importa? Todas essas e mais a mim, SOU EU! He! He! He! He! O meu ninho, no teu ouvidinho ceruminoso, sujinho, vai me transformar, me renovar. Valeu a estada, Morfeu!

- Sai! Zzzim! Vaizzz! Ai! Não conzzingo maizz! Zzum! Zziimm! Zeu...

- Deu, filhinho! Pensou que eu passava a vida só a parasitar? Não! Chupava, sangrava, me deliciava, mas no fundo era cultivo daquilo que me seria eu. Mas tem contrapartida, claro! Você em mim se transformaria.

Na lapide:

Seres pequenos viram mosquitos um dia.

Mosquitos são seres pequenos.


JC.

Deus não tem barbas longas





Antes de expulsá-los do Paraíso Terrestre, o Criador de Ilusões, armou um circo de maçãs.
Faltou tudo no banquete, pães , carnes, bolos e vinho.
Mas , Adão e Eva , no mundo exterior, achariam sem dúvida, tonéis de vinho endiabrado,
milhares de serpentes e comidas com tempero forte , carregadas na gordura.
O último jantar dos primeiros pecadores foi cansativo.
Deus só sabe fazer maçãs.



Patricia M.

Carta portuguesa






Caro,

Neste instante queria matar-te. Pegar uma arma branca e enfiá-la até o cabo na sua barriga. Morte. Queria ver seu rosto de monóculo, pálido e doentio: um poeta sangrando. E depois desse terror eu também morreria, meu amado, por abandono.

Na sua conversa de adeus, muito polida e terna , revelou o que eu já sentia há tempos.

A cada dia sua alma se transforma e não encontra um centro exato.

Sinto vontade de morrer neste barco, junto ao cais.

Seríamos dois caixões no morgue decorados de forma discreta.

Sem cristianismos, cruzes e terços.

Leria em sua lápide: Escritor, poeta e verdugo.

Toda a Lisboa dos jornalistas e escritores viria ao seu encontro. Tragédia.

Os homens com os chapéus desabados e fumando muito.

As mulheres, umas poucas parentes velhas , e algumas primas, vestidas de negro.

Tenho a impressão que você não é mais você há anos. Desde os quartorze a bordo

daquele navio vindo da Cidade do Cabo com sua família. Já um homenzinho.

Aquele terror e mal-estares dos longos dias no mar. Vagalhões de desejos.

O ritual sexual no tombadilho, a dor e depois o novo desejo:

o turbilhão da escrita.

Do Oriente ao Ocidente , Escócia e Irlanda. Mary, Lidia e outras inglesinhas.

Um amor platônico por um jovem estudante inglês.

E uma alma tatuada nas tabernas inglesas com o Símbolo da Ordem da Aurora.

Histórias de Portugal , Astrologia, Gregos, Cabalistas e Magos.

Um navegador português não faria tanto !

Quanta alma, caro poeta !

E você , adoentado, escrevia , grandes são os desertos, minha alma !

Fernando, o Universo é sua escrita. Vai seguir em frente, cada vez mais trêmulo e

sonhador , com canetas, tintas e uma multidão de constelações neste tapete azulado.

Por isso te odeio. Te amo.

Da sua,

Ofelinha



Patrícia M.



* Ofelia Queiroz, foi a única namorada de Fernando Pessoa, dizem.

O escritor termina tudo no barco e parte. Ofélia aturdida , ainda permanece.

Esta é sua carta de adeus ao poeta.


* Imagem via Crashingly Beautiful, Medieval Sky


Ida

O chacoalhar desse rio, eu conheço de cor.
Percorro esse caminho há não sei quantos anos. Cada movimento do barqueiro, cada mergulho do remo, cada detalhe da paisagem, dia após dia, deixam suas marcas em mim como a água entalha o casco do barco sob meus pés.
Meu destino não sou eu que escolho.


Valéria Piassa Polizzi

Fogo-fátuo

Dizem que a arte eterniza. Eterniza a beleza. Eterniza o amor. Eterniza o fugaz afago de um instante. Talvez. Mas e quanto ao sofrimento, ao horror? Será que um artista tem a capacidade ‒ ou o direito ‒ de condensar, numa pincelada rubra, a expressão da perplexidade humana diante da tragédia? E não falo da tragédia heroica, da inexorável desventura greco-latina, da tragédia, enfim, trágica. Falo do olhar de uma mãe defronte ao corpo cadáver do único filho, abatido pela inglória foice suja de merda de uma diarreia. É possível retratar e perpetuar a já infinita dor dessa invertida orfandade? Afinal, quantas são as cores primárias? Apenas três, certo? E as dores primárias, como contabilizá-las? Como encontrar a mistura certa de tintas para pintar a escuridão completa de uma existência incolor?

Essas questões me vêm à mente porque neste momento observo um pintor, com o cavalete montado na margem do rio pelo qual eu passo rumo ao meu destino. Não enxergo sua obra, mas tenho certeza de que me pinta. A cada braçada de meu barqueiro, uma pincelada na tela. Ele me olha, me esquadrinha, e maneja o pincel arrogantemente, como se fosse o próprio Deus dando forma a uma nova criatura. Mas o que sabe ele da minha história? O que enxerga em meu rosto, em minha alma? Será ele onisciente como o criador?

Ele não sabe nada de mim. Aposto que, por conta de meu vestido preto, me toma por uma viúva indefesa e pinta minha face com um tom lívido e angustiado. Idiota. Fraco de espírito, como todos os homens desta terra. Não sabe que é ele próprio o ser humano indefeso da história, disfarçando no vaivém do pincel sua vacilante condição de macho. Assim como certo homem respeitado e venerado desta corte, cujo nome não vem ao caso. Esse senhor também era mestre em manejar o próprio pincel, com o qual me lançou nas entranhas sua espessa tinta. O pincel ‒ instrumento, arma, obelisco, cajado ‒ é o objeto mais poderoso com que o macho conta para impor sua primazia e esconder sua indecente fragilidade.

Estou grávida. Trago dentro de mim a obra suprema da criação humana e divina. Mais humana ou mais divina? Herege, disseram em coro. Nem o homem nem o Espírito Santo me fizeram conceber. No tribunal, julgaram que o filho que espero vem das trevas, fruto das noites de bruxaria. Do meu pacto com o diabo. Ah, se eles soubessem que esse diabo veste pálio e mitra. Se percebessem no rosto do meu próprio juiz o suor fervente, saturado de pecado e luxúria. Talvez até o saibam. Mas alguém tem que ser condenado pela perdição da humanidade, e nada melhor do que encontrar uma Eva qualquer em quem vestir a mortalha simbólica do primordial pecado.

Minha mortalha. Negra como o coração daqueles homens que me condenaram à fogueira. Negra como o riso das mulheres que me atiraram no rosto a maculada pedra da própria virtude corrompida. Negra como o olhar oblíquo do barqueiro encarregado de me transportar pelas águas do Letes até o local onde serei imolada. Negra como o odor dessas flores vermelhas com a qual me coroaram e estigmatizaram. Negra como a tíbia vida que trago em meu útero e que penetrará a noite eterna sem sequer ter conhecido a ofuscante claridade desta vida.

O artista me encara da margem. E sorri, talvez esperando que eu lhe retribua o ato, para que ele possa fazer de mim a sua Monalisa. Ignoro. Pouco me importa se ele vai me retratar como viúva, amante, sonhadora, bruxa, puta. Por mim, pode pintar meu rosto de azul, pode inventar lágrimas pungentes, pode me adornar com asas ou chifres. Será apenas uma imagem, o esboço de uma mulher idealizada. Não serei eu. Aliás, em poucas horas, eu não serei mais. Desaparecerei na pira da insensatez humana, no fogo que ao mesmo tempo forja poetas e destrói a poesia. E dizem que a arte eterniza.

Eduardo Sigrist

4 de novembro de 2009

A Baleia - Herman Melville

Caso fosse perguntado em seu leito de morte qual de suas obras tinha mais orgulho de ter criado, Herman Melville provavelmente não teria citado aquela que o levou à posteridade. Escritor propenso à aventuras (não só literárias), experimentou o sucesso com seus primeiros livros, Typee (1846) e Omoo (1847), inspirados em suas reais aventuras no mar, quando finalmente decidiu arriscar-se, suplantar a barreira do “autor de massas” e tornar-se um artista respeitado. Para essa empreitada ele inspirou-se em um trágico evento real: em 1820 o baleeiro Essex foi afundado por uma baleia no meio do oceano pacífico, vitimando dezesseis dos dezenove tripulantes da embarcação. Melville fez uma intensa pesquisa investigativa sobre o caso, chegando a entrevistar os sobreviventes pessoalmente. Assim surgia, em 1848, A Baleia, longa e minuciosa reportagem a respeito não apenas do incidente, mas dos torturantes dias que os marinheiros lutaram contra a natureza e a loucura enquanto navegavam a deriva pelo oceano, longe de quaisquer rotas ou esperanças de resgate.

Infelizmente dois fatores contribuíram muito para o fracasso editorial de A Baleia. Primeiro o tom folhetinesco com o qual Melville tratou a tragédia. Um dos sobreviventes, Thomas Nickerson, chegou a ameaçar processar o autor, mas o processo não avançou pois na mesma época Nickerson teve sua vida devastada com o descobrimento que ele e os outros dois remanescentes do afundamento do Essex recorreram ao canibalismo durante seus aflitivos dias à deriva. Pior: chegaram a realizar sorteios para decidir quem seria executado e servido aos restantes. O escândalo preocupou os editores de Melville, que recolheram a obra das livrarias poucos dias após seu lançamento.

Capa da única edição remanescente de "A Baleia",
atualmente exposta no Museu Herman Melville em ArrowHead

Desesperado, Melville percebeu que, de modo a conseguir aproveitar aquela história e, ao mesmo tempo, ser reconhecido como artista de respeito, deveria adaptá-la. Desconstruí-la como fato e reconstruí-la como alegoria. Precisava se afastar dos detalhes mais grotescos e aprofundar-se na alma dos personagens. Assim nasceram tanto Moby Dick, a baleia, quanto Ismael e Ahab. Do original sobrou apenas o fato de uma baleia ter afundado um navio. Até a raça da baleia ele mudou, trocando a cinzenta cachalote pela poética baleia branca. Em 1851 Moby Dick chegou às livrarias.

Mas Melville se precipitou. Lançou sua obra mais ambiciosa apenas três anos após o estouro do escândalo do canibalismo no Essex. Seu livro foi recebido com frieza tanto pelo público quanto pela crítica, o que o fez retornar de vez à literatura de aventura. Diferente de Ahab em seu derradeiro encontro com Moby Dick, Melville não deixou que sua criatura o arrastasse às fossas de uma obsessão.

Mas é em A Baleia que vemos um outro Herman Melville. Vemos lá um autor dando os primeiros passos em direção a uma maturidade artística. Maturidade essa que podemos comprovar, a despeito do fracasso em seu lançamento, em Moby Dick. Mas também vemos lá uma obra que, caso fosse lançada em outras circunstâncias, poderia retirar de Truman Capote o título de criador do estilo “romance não ficcional” com seu A Sangue Frio, lançado mais de cem anos depois.

Ironicamente, em 2001 o autor americano Nathaniel Philbrick lançou o livro No Coração do Mar, que narra a tragédia do Essex nos mínimos detalhes jornalísticos. A obra foi baseada nos diários do próprio Thomas Nickerson, que encontravam-se perdidos até 1980. Por este livro Nathaniel ganhou o National Book Award daquele ano.

Em seu leito de morte provavelmente Herman Melville não citaria nem A Baleia nem Moby Dick, o que é uma pena. Mas tudo bem. Caso A Baleia tivesse sido um sucesso em seu lançamento, provavelmente nunca conheceríamos Moby Dick, uma das obras mais influentes da literatura mundial.

Por Alexandre Heredia

Outonos

3 de novembro de 2009

Qual é o texto?




Torta de Maçã Torta


abre-te Oh! portal da loucura dormente
e despeja todo o ranço da humanidade
sobre o manto selvagem de minha memória

[Marcos RoMa]

2 de novembro de 2009

Ascender

Vaga-lume pisca
no escuro invejo
lucidez assim

Valéria Piassa Polizzi

De olhos maior que a boca

Chegou boiando na praia. Inchado, se decompondo. Dali de cima, pareceu-lhe um banquete. Zzzzzzzzz sobrevoou rasante escolhendo a porção mais putrefata. Mirou bem naqueles orifícios, duas grutas grotescas. Aterrissou esfregando as finas patas de satisfação. Mas provou e não gostou. Muito salgado.

Valéria Piassa Polizzi