15 de outubro de 2009

O Divã


Hoje tem divã. E estava atrasada. Chegava sempre atrasada na terapia. Levei mais tempo no banho que o habitual e minha cabeça estava à mil. Não sabia o que vestir e fiquei olhando o guarda-roupa aberto. Vesti o de sempre: jeans, camiseta e tênis. Não sabia combinar roupas e acessórios como fazem as moças mais vaidosas. Comecei a rir em frente do espelho quando imaginei que viveria muito feliz e tranquila na China, vestida de azul para sempre, com sapatilhas pretas. Estiquei meus olhos like a chinese girl no espelho. Terapia !
Hoje eu ia falar tudo. Já estava naquele divã há dois anos e não conseguia ir além do cotidiano, da trivialidade superficial. Rodopiava em círculos no consultório confortável. Aquele divã era meu refúgio e masmorra. Não tinha coragem de olhar a terapeuta. Dependendo do dia, o divã virava foguete em direção à Lua, colchão de folhas , barco à vela ancorado, o gigantesco Titanic indo à pique, bote à remo deslizando no vagalhão, prédio em chamas, um Joelma de aflições. Às vezes, o divã chorava copiosamente e emudecia. Outras , eu era lançada e despencava em Chernobyl. E eu, morria imediatamente , intoxicada. Tossia, bebia água e sentia vontade de vomitar. O divã era mágico: virava sala de dança, cama de solteiro desarrumada, sessão de cinema com balinha de hortelã, quarto de hotel da Major Sertório, boate gay loka ou o lindo altar da igreja São Luis. Um divã muito doido.
O metrô , por conta da chuva pesada, estava mais lento. Olhei o relógio , chegaria fora do horário e a terapeuta ia descontar todos os minutos. Quarenta e cinco minutos espremiam-se em trinta. Quando chegou no Anhangabaú, estacionou de vez. No alto-falante avisaram que a Sé tinha problemas. Um "objeto" nos trilhos. Fico sabendo que o treco jogando na linha, era um corpo dilacerado, um suicida.
Terapia, terapia, terapia. Comecei a suar dentro do vagão e olhava o relógio de forma obsessiva e para a pequena sacola que carregava. Um presente. Ouvi que hoje era o aniversário da terapeuta e por impulso comprei um mimo. Hoje eu não ia deitar no divã. Ia encará-la. Dois anos afogada em palavras, imagens e delírios. Aquele divã idiota. O trem andou novamente e eu já estava muito suada de aflição. Imaginei o corpo estraçalhado retirado pelos paramédicos dos trilhos. Deviam removê-lo com pincéis ou uma pá ? Arrepio. Terapia !
Hoje não tem divã. Entrei no consultório, que tinha cheiro de folhas úmidas e perfume suave. Caminhei quase correndo para a sala e sentei na poltrona em frente à dela.
Aquela mulher madura tinha o rosto da atriz Jane Fonda, nos anos 70.
- Não prefere o divã ?, disse.
- Hoje não, respondi. Trouxe um presente prá você. Sei que é seu aniversário. Ouvi na recepção. E estendi a sacola para ela. A terapeuta levantou as sobrancelhas , surpresa.
Disse de forma atabalhoada que tinha atrasado por conta de um suicídio na Sé, nos trilhos do metrô. Estendi uma caixa rosa pequena com uma fita estrombólica para ela.
- Feliz Aniversário ! - e olhei seus olhos hollywoodianos.
A psicóloga abriu a caixa com cuidado e olhou o jogo de damas feito por um designer.
- Um jogo de damas ? , disse e sorriu. Que peça bonita !
- Sim , achei lindo ! , respondi . Olhei fixamente para a Barbarella e disparei:
- Uma dama come a outra.

Pronto, desabafei. Início de sessão: saí do armário.

Patricia M.

* Imagem, escritório do dr.Freud, seu divã

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