15 de outubro de 2009

"O Domador de Furacões" por Bruno Cobbi

Tempest Elemental by Wizards of Coast
"Tempest Elemental" by Wizards of Coast

Era um ciclone com nada além de desordem na cabeça, corpo, alma e coração. Como pipa solta em tempestade, girava entre pensamentos, atitudes, escolhas e fatos — de hoje e ontem — e nada se construía diante dele. Ou por suas mãos. Pelo contrário, algum deus furioso e sádico insistia em emprestar-lhe seus relâmpagos incessantes, outorgando-o a despejá-los sobre a vida morna que havia construído. Tudo exatamente como o cigano professara meses atrás, durante a quaresma.

Primeiro de tudo, esse deus tirou-lhe a casa. Sem o recanto, meio toca, meio castelo, ele não teria onde se esconder de si mesmo. Com isso, também lhe afastou os amigos. Manteve-os no mesmo mundo, mas todos distantes e ocupados para que ele sentisse o peso de incomodá-los, caso o fizesse. Colocou-os assim para que ele experimentasse a consciência sincera dos afogados ao suplicarem ajuda. E não demoraria a fazê-lo. Disso o deus sabia. Como alerta para ele mesmo, era preciso que fosse assim.

O próximo passo foi permitir (e até facilitar) que se frustrassem seus planos e lhe sumisse o sustento. Prevenido como era, demoraria um pouco até que se esgotassem todas as reservas dele. Já sem o lar, um inverno ao relento seria mais rigoroso e, para acelerar, seria bom que não lhe houvesse disciplina ou concentração para que tudo se consumisse mais rápido. Como não é permitido aos deuses negar nada aos mortais, restava dificultar-lhe o alcance a isso, mesmo que conhecesse e lhe sentisse a falta. Para isso, o deus guardou toda a dedicação e consciência que couberam em galões bem pesados e estocou-os bem no fundo da última prateleira na sua estante celestial. Depois, dinamitou a escadaria. O mortal precisaria escalar o furacão dentro de si mesmo para apanhar as tais ferramentas e, mesmo que o fizesse, precisaria galgar um caminho de volta com o peso completo, sem derrubar nenhum grão ou gota desse fardo. Teria que beber tudo quando chegasse de volta, em segurança, ao chão de sua alma. Tarefa árdua até mesmo para um deus.

Mesmo sem teto, tribo ou vocação, ele ainda amava e isso era louvável. Protegia sua jovem fada como um lobo, partilhando o pouco pão e os andrajos que lhe haviam sobrado. Em troca, ela se despia de toda vaidade diante dele e, verdadeira como era, o abrigava entre as pernas, quente e macia. Nua desse jeito, ela lhe tinha amor puro e esse era outro recurso ao qual decerto se apoiaria para ignorar sua senda. O deus sabia que a solidão o aguardava nesse caminho e notou que, para obrigá-lo a amar a si mesmo e escalar usando apenas isso, precisava abalar tal patamar no mortal. Como todo amor de fada-amante é inabalável (e ela era, em parte, inocente à senda de seu amado), o deus decidiu que atacaria o coração dele. E atacaria com o que havia de sobra ali: a dúvida.

Nenhum deus é autorizado a ferir o amor, então foi a vez do diabo atuar. Distante de deus como é, a besta é ausente de onisciência e age sob jurisdição premeditada. Ela veio espreitar em disfarce magro, leve e calmo. Farejou, rosnou, mas nem precisou atacar. Notando-a, o mortal preparou-se para o combate e alertou sua amada. Essa, por sua vez, chorou o perigo dele colocar-se tão perto de algo vil como um diabo e pediu que fugissem. Jovem e tolo como era, ele apanhou sua lança e se encheu de coragem contra o adversário, encarando-o de igual para igual. Tal justiça lhe trouxe uma vitória justa e gloriosa, mas encheu-lhe o ego de soberba — a ferramenta preferida de todo demônio.

Tudo o que um diabo precisa é de tempo e atenção. Imortal como o é, o diabo usou toda sua paciência para lamber as próprias feridas e reaproximar-se pelas trevas de uma trégua fingida. Ordenou que seus lacaios roubassem a lança da vítima e, mal sentindo o cheiro da vaidade na presa, desembainhou-a suavemente como lhe é nativo. Diante do mortal desarmado, usou de magia negra para que essa lâmina escura penetrasse como agulha no peito exposto da valentia. Depois, usou o orgulho da caça para despir-se do disfarce e avançar-lhe na jugular sem decência alguma. Despido da decência, todo demônio é pavorosamente irresistível. Todo demônio é imbatível quando é nu. O mortal conheceu a derrota humilhante diante do diabo. Nem sempre é dia da caça.

Feliz ou infelizmente, nenhum diabo tem permissão de matar. O mortal fugiu e se escondeu, sem ganir ou lamentar-se, mas já era tarde demais. Já ciente dessa sua limitação, a besta se diverte judiando e humilhando os adversários vencidos, então enviou seus asseclas para sussurrarem o nome do fugitivo pelo Éter. Quando o encontraram, derrubado numa sarjeta, duvidava do amor da fada e masturbava-se pelo diabo. Trouxeram-no, já nu e ferido, diante do trono da besta e ela mesma o masturbou. Embriagado, o mortal tomou-a para si, currou-a e foi possuído por ela. Essa confusão nublou-lhe o amor e só então o inimigo sorriu. Vitória. Olhou de soslaio para o deus e soube que cumprira sua tarefa. Então, acorrentou-o ali como troféu. Para sempre.

Entretanto, embora seja fardo ácido, o tempo é nato aos morais e soma um apreço único aos fracassos de suas almas. Saiba que é dessas cicatrizes eternas forjadas pelo tempo que os deuses se alimentam quando têm fome, mas não era esse o caso (embora, um dia, certamente viesse a ser). O objetivo era o de sublimar a tempestade de confusão; a tarefa do deus era ensinar seu servo a domar furacões e, nessa missão, “para sempre” era tempo demais. Para o deus desfazer a eternidade imposta pelo diabo, era necessário hastear arreios sobre a besta e resgatar seu filho do inferno. Então, o deus laçou um nó de remorso (que á a chave para a redenção) e colocou-o ao alcance do pescoço do mortal. A saber, essa é chave que abre o portão do inferno por dentro: arrependimento.

Diante da escolha, o servo arrependeu-se. Esse enforcamento o tirou dos grilhões do diabo sem matá-lo, mas levou-o para o alto de outro cadafalso, diante de um poço escuro, de fundo invisível (ainda que longe da morte certa, embora ele não soubesse) e sem outra saída que não fosse confiar em seu deus. Para os mortais sempre sobra o livre-arbítrio e, mesmo oniscientes, é assim que os deuses agem para reconhecer a sinceridade plena. Eles ignoram sua onisciência e entregam as criações aos seus próprios caprichos, confiando que elas saibam o que fazer com esse desconhecido. Dificilmente elas sabem. Muitas se sentam eternamente à beirada do grande poço invisível e raso, desconfiando. Entretanto, dessa vez deu certo. O mortal soube o que fazer sem sequer titubear muito.

Primeiro, ele conclamou todos os seus — amigos, amores e família. Depois, colocou-se diante dos olhos atentos de todos retribuindo a nudez de vaidade que sua fada amante lhe ensinara. Depois mergulhou. Na queda, ilhou-se consigo mesmo e voou. Lá de cima, pode vislumbrar tudo o que lhe sobrara e, assim, soube exatamente o que fazer. Para que escalar quando se podia voar? Foi ao topo de si mesmo e, furiosamente, jogou o último relâmpago para baixo, sobre a própria cabeça. Fez isso com toda coragem que só os apaixonados por si mesmos possuem em suas almas e o deus soube que não se tratara de suicídio ou covardia de nenhuma natureza. Pelo contrário, aquilo era sacrifício sincero. E nenhum deus resiste a sacrifícios, saiba disso.

Esse foi o mergulho para findar o sofrimento. O mortal escancarou sua janela à geada noturna por conhecer o calor da manhã. Ele resgatou-se dentro de si mesmo só para, logo em seguida, entregar-se ao próprio julgamento. Humildade e sinceridade são virtudes louváveis que dão vazão à temperança e plenitude. Essas, por sua vez, ensinam a efemeridade eterna da memória e da vida. Sabem como grafá-la em tábuas de gratidão com sangue e luz, para durarem bem mais do que a neblina do fracasso. Sangue e luz.

Hoje, ele jaz assim; sangrando de braços abertos, sob a luz num mar escuro, sem vergonha nem vaidade. De tudo, resta-lhe a fé em si mesmo e a chama do amor eterno da fada que, ao contrário do que muitos poetas dizem por aí, não morre nunca. Manteve a fé em si mesmo e, por contigüidade, na divindade mais importante de todas: a Sua. Hoje, é esse Deus que habita sua cabeça, corpo, alma e coração. Jaz ajoelhado numa promessa muda. Aguarda respeitosamente a passagem daquele furacão que lhe tirou tudo, mas que, com isso, deu-lhe a chance de recomeçar outra vez. E recomeçar no comando das rédeas, sem voltar ao final da fila. Um prêmio para poucos. Exclusivo dos que sobrevivem ao livro de Jó.

— Bruno Cobbi
http://aprendizdeescritor.com.br

Um comentário:

  1. Cobbito, obrigado pelo texto.
    É um presente.
    Todos nós passamos, dia ou outro por essa saga.
    Abração

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