28 de setembro de 2009

Ale Toresan

25 de setembro de 2009

o sândalo que escorria do homem

- Estou lúcido e louco.
Gritou o homem que, sentado no canteiro da Conselheiro Furtado, brilhava e suava sândalo.
O cheiro, sem pretensões, disputava as narinas dos passantes, com o aroma de merda-seca que subia do Glicério ao meio-dia. Os que paravam ao seu lado tapavam o nariz e o olhavam com nojo, sem distinguir de onde, exatamente, vinham as fragrâncias que se misturavam. Somente quando atravessou a rua e seguiu, sentido Praça da Sé, é que puderam notar aquilo que um rapaz de terno e bíblia sob o sovaco gritava.
- Esse homem tem o cheiro de Deus!
Metros mais tarde, livre do autoproclamado apóstolo, o homem, de poucos mais de trinta anos, retrucou para o grupo de senhoras que, encantadas com seu perfume, lhe ofereceram um marmitex e a palavra de Deus.
- Me dão comida e asilo, e tudo o que eu quero é ser herói da dança flamenga.
Reclamando do sal, do excesso, ou da falta, deitou-se de bruços, diante de uma lanchonete na Tabatinguera, como se quisesse comungar com o calor que vinha de baixo para cima e assava as virilhas de quem usava saia para se refrescar.
Com uma mão no asfalto e a outra na calçada, o homem cuja mandíbula não havia um único dente e que ainda exalava sândalo, mesmo depois de ter o peito e o pinto encharcados, dragou a água sem cor e com cheiro que descia a valeta.
Satisfeito, molhou o rosto, sacudiu a barba e ante a rua que quase duvidava da cena, talvez pelo odor, talvez pelo ato, o homem levitou.
Voou sobre a João Mendes, sobre o adro da Catedral e por cima dela. Parou metros acima das escadarias da entrada, dos pivetes que o apedrejavam, dos guardas e de suas ordens de prisão.
- Me chamam de Jesus, e sou inocente.
Foi a última coisa que disse sobre a praça de lírios, e antes de sumir rumo ao sol.
Tiago Araújo

Levedura de Cerveza

Era um saco cheio de palavras, só e nada mais
Curioso, alguém intenso e corajoso abriu
Surpresa! Quase por inteiro ele sorriu
De dentro amontoadas, as letras mudas, nunca iguais

Um tal de A, um B, um C, várias vogais
Era tanta letra que do saco dava um barril
Juntando uma coa'outra e outra co'uma ele pariu
Uma palavra, uma frase, um conto, letras demais

Um acadêmico diria: isso tem de estar nos anais
Um lunático afirmaria: cadê palavras, tudo sumiu
O escritor escreveria: nada disso, você que nao viu!
E o aprendiz revelaria: são só palavras e nada mais

[Marcos RoMa]

Despertar

Hoje acordei tão ontem!
Perdi a noção das horas
E do homem que já fui.
Acordei tão eles. Tão vocês.
Venham, vamos voar
Ensaiar o passo das nuvens.
Me chamem de vento!
Quero chutar o sol
E beber do mar.

Hoje acordei antes do dia
Antes dos tempos.
Ao leste do leste é meu lar.
Tenho corpo etéreo
E alma eterna.
Vivo e desvivo lá e cá.
Eu sou a brisa de Deus
O lírio do campo
Eu sou a pena do sabiá.

[poema de Eduardo Sigrist]

18 de setembro de 2009

Ale Toresan

13 de setembro de 2009

3 de setembro de 2009

Inutensílios



Em japonês, “chindogu” significa “objeto estranho”, mas talvez a melhor palavra para traduzi-lo seja o neologismo criado por Paulo Leminski: “inutensílio”. Ao que se diz, o conceito foi criado pelo escritor e inventor Kenji Kawakami num livro publicado na década de 1990 sob o título “101 Invenções Inúteis Japonesas: A Arte do Chindogu”. Kawakami imagina (e fabrica) acessórios do cotidiano que são práticos, lógicos, e ao mesmo tempo absurdos, incapazes de ser utilizados. omo por exemplo o seu chapéu para alérgicos, que vem com um rolo da papel higiênico montado no topo. Para sujeitos com rinite, como eu, que às vezes passam o dia inteiro espirrando e assoando o nariz, pode haver algo mais providencial? E menos utilizável?

Tem o protetor contra manchas de molho, uma espécie de “babador” circular em volta do rosto inteiro, que ninguém teria coragem de usar nem em casa, quanto mais num restaurante. Tem a Roupa de Banho Completa, uma espécie de bolha de plástico para pessoas com alergia a água. Tem o Esfregão Para Bebês: enquanto se arrastam de quatro, eles dão polimento na cera do assoalho. Para pouparmos tempo, leitor, vá no http://www.chindogu.com">saite, ou leia esta matéria.

A primeira coisa que me veio à memória ao ver os chindogus de Kawakami foram as invenções abstrusas do pessoal da revista “Mad”, como os parangolés mecânicos de Al Jaffee ou as armas dos espiões (“Spy vs. Spy”) de Alex Prohias. Há também as engenhocas de Rube Goldberg, já comentadas aqui (“A economia Rube Goldberg”, 10.12.2003), e as invenções malucas do marselhês Jacques Carelman, cujo “Catálogo de Objetos Inviáveis” foi editado em 1976 pela Nova Fronteira...

Vou parar a enumeração, pois este jornal inteiro não teria espaço. Estes, caro leitor, são indivíduos que vivem num mundo mais belo e mais livre do que o nosso. Pressionados por uma cultura onde tudo tem que ter valor (seja de uso ou de troca), onde tudo responde ao Mercado, onde tudo tem utilidade e função, estes discretos cronópios correm todos para o prato oposto da balança, e dedicam-se a produzir inutensílios, desaparelhos, futilidades domésticas.

É um gesto filosófico e um gesto político. Com a palavra Kawakami: “Um chindogu é um objeto inútil, mas nem todo objeto inútil é um chindogu”. E ele enumera características para que algo seja um chindogu: “Um chindogu não é para ser usado de verdade. Um chindogu tem que ser algo que possa ser materialmente fabricado. Cada chindogu traz em si o espírito da anarquia. Um chindogu tem que ser um objeto simples, da vida cotidiana. Um chindogu não pode ser vendido. Um chindogu não pode ser criado por razões apenas humorísticas.Um chindogu não pode servir para propaganda. Um chindogu não deve servir para piadas obscenas ou vulgares. Um chindogu não pode ser patenteado. Um chindogu não pode aderir a preconceitos.” Pois é. Quem foi que disse que o mundo estava perdido?

[Texto enviado pelo escritor e compositor Braulio Tavares e publicado por mim no site Cronópios]

2 de setembro de 2009

Alegres mosqueteiros



[Alê Toresan, Luiz Contro, Edson Cruz, Guilherme Salla, Alan e Marco Antonio]

1 de setembro de 2009

Rodas em Campinas


[foto: Alexandre Toresan]


Terminamos nosso encontro de leituras e reflexões no SESC Campinas com a mais intelectual das disputas já travadas por dois seres humanos. De um lado, o escritor Marco Antonio, estratégico, frio e experiente. De outro, o quadrinista, artista plástico, professor e comics, Alan, sanguíneo, cheio de testosterona, vibrante e sedutor. Façam suas apostas. Fácil dizer quem irá ganhar. Lembrou-me um conto do Patrick Süskind (aquele mesmo do romance “O perfume” que vendeu 15 milhões de exemplares em 40 línguas). Um forasteiro chega a uma cidade do interior alemão. Na praça central, adultos jogam dominó e xadrez. Crianças correm entre pássaros com seus dentes reluzentes. Aliás, o campeão de xadrez da cidade está lá, arrasando com mais um coitado. O forasteiro desafia-o. A cidade entra em comoção. Circulam ávidos em torno dos dois gladiadores estrategistas. As apostas correm soltas. Apesar de toda fama do campeão, todos apostam no forasteiro. O cara tem estilo. É quase moreno. Quase um Delon.

Chave de ouro: O forasteiro é derrotado de forma rápida, sistemática e incontestável. Sorrisos amarelos confundem-se com as cabeleiras esvoaçantes.

civilização

no princípio era
o ovo
o pássaro
o vôo

agora a um passo
precipício
avião sangrando
o poente
indiferente

enjôo


[poema quentinho de Edson Cruz]