9 de novembro de 2009

Xadrez da morte

Ao entrar no Piolin, estranhei que o Marçal Aquino não estava sentado à mesa habitual, em frente à janela que permite uma boa visão da eclética turba noturna do Baixo Augusta, de onde ele adorava observar as pessoas e se inspirar para criar seus personagens. A princípio achei que ele ainda não houvesse chegado, mas logo o avistei no fim do corredor, um tanto soturno, meio escondido em uma mesa do canto. Depois dos apertos de mão, dos tapinhas nas costas, dos tudo-bens e de todos esses etcéteras da convivência humana, sentei e percebi que ele já estava na segunda dose de cachaça. Parecia muito perturbado, nervoso por algum motivo que eu não suspeitava.

Até fazermos o pedido, falou muito pouco, nem sequer comentou sobre algum dos escritores russos que ele sempre estava lendo. Tomamos uma cerveja, duas. Silêncio. Realmente algo estava muito errado, eu nunca o vira assim. O Marçal sempre foi bem-humorado. Será que estava bravo por eu ter chegado atrasado?

Na hora em que o prato foi servido, perguntei se ele estava bem e por que havia me convidado assim tão em cima da hora para ir jantar lá. Ele só me olhou estranho e perguntou: "Você ainda faz traduções do sueco?" Respondi que sim, que aquele era meu meio de sobrevivência. Então me encarou, tomou coragem e tirou de sua bolsa uma caixa de madeira. "Toma. Traduz e me liga assim que terminar." E saiu, olhando para todos os lados, como se temesse estar sendo espionado. Fiquei perplexo, com um fettuccine alfredo inteiro pra devorar sozinho e um misterioso objeto de madeira a me instigar a imaginação.

Eu estava com muita fome, mas não resisti e abri a caixa, em cuja tampa reconheci alguns caracteres rúnicos. Dentro, um livro amarelado. Não tinha capa, já começava com a folha de rosto, onde se liam apenas o título em sueco, Döden Schack, e o nome do autor, Johannes Bureus.


  Retrato de Johannes Bureus, 1627.

Para mim, aquilo não dizia nada. Eu não conhecia o autor nem a obra. Döden Schack, numa tradução ao pé da letra, seria O xadrez da morte. Pensei em folhear aquelas páginas e tentar descobrir alguma informação mais esclarecedora, mas elas estavam tão empoeiradas que fiquei com medo de que o garçom viesse me censurar por sujar a toalha. E como não consigo pensar direito de estômago vazio, decidi jantar primeiro.

Nunca fui muito de acreditar em sincronicidade e sempre detestei esse lado quase místico de Jung. Ora, seria muita ingenuidade pensar que certas coincidências do dia a dia pudessem ser algo mais do que coincidências e estar conectadas entre si de maneira acausal segundo certo padrão de acontecimentos significativos. No entanto, tive que mudar de ideia depois que meu celular tocou, na hora em que eu ia começar a comer. Era o Edson Cruz. Havia me ligado para saber se eu tinha lido seu novo poema no Sambaquis. Encarando o fettuccine e o livro à minha frente, faminto pelo primeiro e intrigado pelo segundo, fui até mal-educado com o Edson e respondi "poesia numa hora dessa, pô!" Sem lhe dar tempo de reagir, fui logo contando do Marçal e do estranhíssimo livro que eu teria que traduzir. Fiquei muito mais confuso quando o Edson, sempre tão sereno e lúcido, me interrompeu e começou a falar atropeladamente sobre o novo poema, "Nuvens negras". O tema era a morte, e a imagem que o Edson escolhera para ilustrar o texto era uma cena de O sétimo selo, filme que o Ingmar Bergman havia feito em 1956 depois de ter lido e estudado profundamente o ‒ e o Edson parou para respirar e enfim dizer ‒ Döden Schack. Não entendi nada. "Que história é essa, Edson?" Ele ficou eufórico e disse que já estava saindo de casa para me encontrar no Piolin.

Isso que dá ter amizade com escritores, pensei, enquanto comia a massa já fria. Um mais esquisito que o outro. O que o Marçal, um cara que sempre escreveu uma prosa mais realista, suburbana, tinha a ver com um livro sueco que, à primeira vista, me parecia sobretudo místico? E o Edson, que foi entrar na história só por ter ilustrado um poema com uma imagem do Sétimo selo? Nada daquilo fazia sentido. Era melhor eu esperar aquele doido chegar para me esclarecer.

O Edson demorou mais de uma hora. Disse que precisou fazer umas pesquisas e encontrar uns papéis que guardava havia alguns anos. Jogou uma pasta em cima da mesa e ligou o notebook. Quando ameacei abrir a caixa para lhe mostrar o livro, ele, com um olhar que me pareceu apavorado, disse que não fazia questão de ver o original. Quando a tradução ficasse pronta ele leria, já que não sabia nada de sueco.

Primeiro ele mostrou uma notícia recortada da Folha de S. Paulo do dia 17 de agosto de 2003. Era sobre a morte de Haroldo de Campos. Trazia apenas a causa da morte ‒ falência múltipla de órgãos ‒, uma breve biografia, as obras mais famosas, comentários de amigos, esse tipo de coisa que sempre vemos no obituário de gente importante. Uma informação estava grifada, acredito que pelo próprio Edson:

Na noite em que foi levado para o hospital, Campos trabalhava na tradução de um livro escrito em sueco. Nem o livro nem a tradução foram encontrados em sua mesa de trabalho. O irmão Augusto notou apenas uma coisa estranha: sobre a mesa havia um tabuleiro de xadrez, e as peças remanescentes estavam dispostas numa posição que revelava um iminente xeque-mate contra o rei branco.


Da pasta, Edson tirou o xerox de um artigo em espanhol escrito por um certo Pierre Menard, sobre "a possibilidade de enriquecer o xadrez eliminando um dos peões de torre". Achei entediante a leitura, até porque o autor, no final, rejeita a própria sugestão. O curioso, no entanto, é um comentário na página 13 que Menard faz do livro El ajedrez de la muerte ‒ o Döden Schack. Diz que existia apenas um exemplar em todo o mundo, que circulava somente entre os associados da Ordem dos Enxadristas do Caos. Escrito pelo místico sueco Johannes Bureus, o livro era um tratado sobre como o estudo das runas influenciava o raciocínio dos jogadores de chaturanga, jogo que deu origem ao xadrez. Mais importante, no entanto, era a descoberta de Bureus: uma jogada conjunta entre o cavalo e o bispo branco cujo movimento final, chamado de dämonem, seria uma espécie de anticheque-mate ‒ se a estratégia desse certo, o jogador das peças brancas não só venceria a partida, como também daria cabo do jogador das peças negras: a própria Morte, que se personificaria no corpo do oponente no momento em que a jogada se concretizasse. Neste caso, o enxadrista branco se tornaria imortal. Por outro lado, caso perdesse, seria imediatamente levado pela Morte.

Li aquilo em meio a alguns copos de cerveja, para tentar me convencer de que tudo era mesmo verdade. Como eu parecia incrédulo, o Edson me mostrou um vídeo na internet, um depoimento de Bergman a respeito dessa obra. O cineasta deixa claro que Johannes Thomae Agrivillensis Bureus e seu Döden Schack realmente existiram, e que ele próprio, Bergman, se inspirou no livro para compor o personagem da Morte em O sétimo selo. Ele confessa que só sobreviveu porque jamais foi um bom enxadrista, portanto, não quis arriscar a vida em uma partida com a morte. Mas ele não revela como o livro foi parar em suas mãos ou como seria a jogada final, cujo nome, dämonem, ele demonstrou por meio de anagramas. Segue abaixo o vídeo para que ninguém tenha dúvidas disso.





"E então?", me perguntou o Edson. Eu não sabia o que pensar, o que fazer. Tudo era inacreditável demais, mas sem dúvida havia uma relação perfeitamente plausível entre o que disseram Bergman e Menard a respeito de Johannes Bureus. E havia a prova material: a caixa à minha frente. Além disso, acabei me lembrando de um dia em que o Marçal Aquino me havia contado sobre uma visita que tinha feito ao Haroldo de Campos na noite em que o poeta foi para o hospital. Tudo se encaixava. Eu tinha em mãos algo enigmático, porém verdadeiro e valioso. Era minha chance de finalmente aparecer no cenário editorial com uma tradução relevante. Com o incentivo do Edson, peguei a caixa e fui embora, começar logo esse trabalho que me consagraria.

Agora estou em meu escritório, postando esta mensagem de blog antes de começar a tradução. O livro está aberto sobre a mesa, junto com dicionários, gramáticas, obras de referência. E, é claro, um tabuleiro de xadrez. As peças brancas posicionadas do meu lado. Dentro de algumas horas eu publico o resultado da partida aqui no Escritores na Oficina.

Eduardo Sigrist

5 comentários:

  1. Fernando Sigrist10 novembro, 2009

    Por favor, alguém aqui do Escritores na Oficina sabe onde está o Eduardo, meu irmão?
    Desde que postou este texto ele desapareceu.
    Se alguém tiver notícias, peço que, por caridade, me avisem.
    Obrigado.

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  2. José Mindlin10 novembro, 2009

    Bom dia, sr. Eduardo.
    Gostaria de marcar uma reunião com o senhor para negociarmos a venda do Döden Schack. Há anos estou tentando comprar esta obra para minha biblioteca particular.
    Já estive em Estocolmo, em Alexandria, em Buenos Aires e em vários outros recantos deste mundo, onde surgiram rumores da presença desse livro. Jamais consegui sequer manuseá-lo.
    Peço, por gentileza, que entre em contato comigo.

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  3. oi, Eduardo. já havia postado um comentário mas ele, misteriosamente, desapareceu.

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  4. Que viagem! Eduardo, caso você e o livro tenham sido sequestrados, dê um sinal. Tenho uns amigos que podem ajudá-lo a sair desta, e partir para fazer disto um romance policial cheio de suspense. Parabéns querido, onde quer que você esteja.

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