5 de novembro de 2009

Fogo-fátuo

Dizem que a arte eterniza. Eterniza a beleza. Eterniza o amor. Eterniza o fugaz afago de um instante. Talvez. Mas e quanto ao sofrimento, ao horror? Será que um artista tem a capacidade ‒ ou o direito ‒ de condensar, numa pincelada rubra, a expressão da perplexidade humana diante da tragédia? E não falo da tragédia heroica, da inexorável desventura greco-latina, da tragédia, enfim, trágica. Falo do olhar de uma mãe defronte ao corpo cadáver do único filho, abatido pela inglória foice suja de merda de uma diarreia. É possível retratar e perpetuar a já infinita dor dessa invertida orfandade? Afinal, quantas são as cores primárias? Apenas três, certo? E as dores primárias, como contabilizá-las? Como encontrar a mistura certa de tintas para pintar a escuridão completa de uma existência incolor?

Essas questões me vêm à mente porque neste momento observo um pintor, com o cavalete montado na margem do rio pelo qual eu passo rumo ao meu destino. Não enxergo sua obra, mas tenho certeza de que me pinta. A cada braçada de meu barqueiro, uma pincelada na tela. Ele me olha, me esquadrinha, e maneja o pincel arrogantemente, como se fosse o próprio Deus dando forma a uma nova criatura. Mas o que sabe ele da minha história? O que enxerga em meu rosto, em minha alma? Será ele onisciente como o criador?

Ele não sabe nada de mim. Aposto que, por conta de meu vestido preto, me toma por uma viúva indefesa e pinta minha face com um tom lívido e angustiado. Idiota. Fraco de espírito, como todos os homens desta terra. Não sabe que é ele próprio o ser humano indefeso da história, disfarçando no vaivém do pincel sua vacilante condição de macho. Assim como certo homem respeitado e venerado desta corte, cujo nome não vem ao caso. Esse senhor também era mestre em manejar o próprio pincel, com o qual me lançou nas entranhas sua espessa tinta. O pincel ‒ instrumento, arma, obelisco, cajado ‒ é o objeto mais poderoso com que o macho conta para impor sua primazia e esconder sua indecente fragilidade.

Estou grávida. Trago dentro de mim a obra suprema da criação humana e divina. Mais humana ou mais divina? Herege, disseram em coro. Nem o homem nem o Espírito Santo me fizeram conceber. No tribunal, julgaram que o filho que espero vem das trevas, fruto das noites de bruxaria. Do meu pacto com o diabo. Ah, se eles soubessem que esse diabo veste pálio e mitra. Se percebessem no rosto do meu próprio juiz o suor fervente, saturado de pecado e luxúria. Talvez até o saibam. Mas alguém tem que ser condenado pela perdição da humanidade, e nada melhor do que encontrar uma Eva qualquer em quem vestir a mortalha simbólica do primordial pecado.

Minha mortalha. Negra como o coração daqueles homens que me condenaram à fogueira. Negra como o riso das mulheres que me atiraram no rosto a maculada pedra da própria virtude corrompida. Negra como o olhar oblíquo do barqueiro encarregado de me transportar pelas águas do Letes até o local onde serei imolada. Negra como o odor dessas flores vermelhas com a qual me coroaram e estigmatizaram. Negra como a tíbia vida que trago em meu útero e que penetrará a noite eterna sem sequer ter conhecido a ofuscante claridade desta vida.

O artista me encara da margem. E sorri, talvez esperando que eu lhe retribua o ato, para que ele possa fazer de mim a sua Monalisa. Ignoro. Pouco me importa se ele vai me retratar como viúva, amante, sonhadora, bruxa, puta. Por mim, pode pintar meu rosto de azul, pode inventar lágrimas pungentes, pode me adornar com asas ou chifres. Será apenas uma imagem, o esboço de uma mulher idealizada. Não serei eu. Aliás, em poucas horas, eu não serei mais. Desaparecerei na pira da insensatez humana, no fogo que ao mesmo tempo forja poetas e destrói a poesia. E dizem que a arte eterniza.

Eduardo Sigrist

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