12 de novembro de 2009

Papo Família


– Minha tia faz igualzinho!

– Sério?

– Sério. Teve um dia num velório aí, nem lembro de quem, e ela não conseguia parar de rir. “Meu pêsames” aqui, “Minhas condolências” ali e ela lá, fazendo mais barulho tentando não rir do que realmente rindo.

– Mas ela ria por quê?

– Acho que é o jeito dela de lidar com o nevosismo. Ou alguém fez um comentário maldoso a respeito do falecido. Ou da viúva. Sei lá.

– É sempre assim, né?

– É...

– A batata está boa?

– Está uma delícia. Quer?

– Não, valeu.

– Eu normalmente não como batata frita. Só quando minha vó faz.

– São boas?

– Nossa, se são! Sabe aquelas que vem no saquinho? Aquelas, que a gente compra no mercado e deixa no freezer. Crocante por fora, macia por dentro, sabe?

– Sei.

– Não chega aos pés da batatinha da minha vó.

– Eu gosto dos bifes que minha vó faz. Meu pai diz que minha mãe não faz bifes. Diz que ela comete bifes.

– Ai, que maldade!

– É sério! Ela consegue estragar até filé mignon. Não sei, ela tem uma capacidade monstruosa de estragar pedaços de carne. Sorte que não é hereditário. Daí, olha só, ela foi e contratou uma cozinheira que conseguia ser pior que ela! Um dia comprei um medalhão de picanha e pedi pra ela preparar. Quando sentei na mesa ela tinha martelado tanto o pobre bife que dava pra enxergar através dele!

– Mentira!

– Juro. Daí pedi pra minha vó me ensinar a fazer os bifes como os delas. Não consigo fazer igual, mas fica bem decente.

– Minha vó também tentou me ensinar a fritar as batatas. Só que as minhas ficam uma porcaria. Mas faço uma salada boa.

– Salada?

– É. Que é que tem?

– Nada.

– Fala.

– Esquece.

– Você vai ver. Um dia a gente vai no sítio do meu tio e você faz a carne e eu faço a salada.

– Teu tio tem sítio onde?

– Em Ibiúna.

– O do meu tio é em Itapetininga. Faz tempo que não vou lá. Só ia quando era moleque.

– No do meu tio ou vou de vez em quando. Mas estou indo menos. É tudo sempre...

– … o mesmo papo. Não é? As mesmas piadinhas. Tenho um tio que sempre que me vê pergunta se eu já comecei a bater punheta... Desculpe.

– Não, tudo bem. Sempre que vou visitar minhas tias elas me perguntam quando é que eu vou casar... Desculpe.

– Relaxa. É chato isso, né? Toda essa...

– Toda essa felicidade. É. Bem chato. Parece que eles chegaram num patamar pequeno burguês ideal e acham que todo mundo tem que seguir a mesma fórmula. Não conseguem entender que a fórmula de felicidade deles pode não dar o mesmo resultado com todo mundo. Eu não quero esse negócio de casinha feliz, cachorro de raça, dois ou três filhos, árvore de natal...

– Vocês fazem natal em família também?

– Afe, nem me diga. Véspera de natal é o pior dia do ano.

– As tias dando ordens da cozinha, os tios enchendo a cara na sala...

– Bate boca, primos ranhentos, futebol, novela, Faustão...

– Roberto Carlos, Xuxa, e, claro...

– Missa do Galo! O que é que as velhas querem tanto com aquele Papa? E ficam pedindo silêncio, pois o locutor narra tudo sussurrando, como se estivesse dentro da igreja...

– Missa com locutor! E lá vem o coroinha, penetra o altar, carrega a taça, passa ao bispo um, que passa pro bispo dois, que dá uma jingadinha e passa para o Papa que pega, levanta e... É BÊNÇÃO!

E a velharada vai à loucura! Nesse ponto as tias estão cansadas e começam a beber e a reclamar.

Reclamar dos maridos. É a hora da fofoca. É a hora de falar mal dos que não vieram. Contar os podres de quem não pode se defender.

– É tudo igual, né?

– É...

– Quer mais uma cerveja?

– Quero.

– Como é aquela frase mesmo? Aquela do Dostoiévski. “Todas as famílias são iguais...”.

– “Todas as famílias felizes se parecem entre si. As infelizes são infelizes cada uma a sua maneira”.

– Essa mesmo.

– Não é do Dostoiévski. É do Tolstoi. Anna Karenina.

– Ah, é tudo russo. Mas é bem isso, né? Parece que toda família tem a mesma biografia, os mesmos personagens. Pura hipocrisia! É tudo uma camada de glacê num bolo de esterco! Não entendo por que a gente tem que gostar da família obrigatoriamente. A gente não escolhe nem os irmãos que vai ter. Que o diga tios, tias, primos... Que foi?

– Não, nada. Desculpe.

– Fala. Você estava pensando em alguma coisa.

– É que... Bom, não costumo falar sobre isso.

– Fala, vai. É algum podre?

– Meu tio. Marido da minha tia.

– Que é que tem?

– Ele já foi preso.

– Sério?

– Sério. Por agressão e atentado ao pudor.

– Ah, mentira!

– Ele chegou bêbado um dia em casa. Derrubou tudo o que tinha no caminho pro quarto. Quando tirou a roupa e deitou deu de cara com homem na cama. Ele levou um puta susto. Já pensou merda e saiu socando. Foi aquele fuzuê. Maior baixaria.

– E sua tia?

– Então, no final ERA minha tia que ele trombou na cama. Ela tinha cortado o cabelo bem curtinho, que nem aquela mulher da novela, sabe? Ela ia mostrar quando ele voltasse do trabalho, mas ele ficou bebendo com os amigos até tarde. Daí ele...

– Ai, meu Deus!

– Escuta! Daí ele saiu batendo. Deu uns bons socos na minha tia, que saiu correndo. Foi até a rua e começou a gritar por socorro. Meu tio estava tão bêbado que não estava nem aí. Saiu descendo o braço. Ai, meu Deus, isso não é engraçado...

– Claro que é! E aí, rolou a maior baixaria?

– Maior baixaria! Meu tio, quando chegou na luz, acho que reconheceu minha tia, mas estava tão fora de si que misturou tudo. Batia nela como se estivesse batendo nele, mas ficava xingando-a de vagabunda, piranha, essas coisas.

– Nossa...

– Pior: ele estava só de cueca! No meio da rua, esbofeteando a mulher, xingando-a de tudo quanto é nome, só de cueca! Não demorou muito pra chamarem a polícia.

– E sua tia?

– Ela deixou ele ficar preso por dois dias. Depois ficou com pena e retirou as queixas. Mas o casamento não durou muito depois disso. Esse meu tio era um safado. Ficava botando as sobrinhas no colo só pra ficar bolinando. Quando minha tia ficou sabendo disso brigou com toda a família.

– Ela não acreditou?

– Até acho que acreditou. Mas ela não queria se divorciar. Tivemos que aturar os dois discutindo por alguns anos ate eles finalmente se separarem. Toda reunião de família terminava com os dois lavando a roupa suja na frente de todo mundo.

– Ele fez com você?

– O quê?

– Te botou no colo e ficou te bolinando?

– Ah, fez. Várias vezes. E ficava falando baixarias no meu ouvido também. Na época eu não entendia nada. Parecia que ele estava fazendo alguma brincadeira, sei lá.

– O primeiro seio nu que vi na minha vida foi de minha prima.

– Como é?

– A gente estava brincando de “verdade ou desafio”. Eu era moleque de tudo. Minha prima tem quase a minha idade. Mas já tinha, sabe...

– Peitinhos?

– É. daí eu perguntei pra ela “Verdade ou desafio” e ela: “Desafio”. A gente tava meio brigado, nem lembro porque. Queria fazer uma coisa que a deixasse envergonhada. E ela estava toda orgulhosa que já usava sutiã. Ficava se fazendo de madura, sabe? A gente estava no quartinho dos fundos da casa dela. A gente e uma galerinha. Nem pensei duas vezes: “Mostra os peitos!”. A galera vibrou. Ela era a única menina na turma. Ninguém ficou do lado dela. Ela sabia que se não cumprisse o desafio seria expulsa da brincadeira. Tentou barganhar. Tentou diminuir a pena. “Só o lado”. Rapidinho. Mas quanto mais ela se defendia mais a gente colocava regras. No final concordamos em só um dos peitos, mas por dez segundos inteiros. E ela foi lá e pimba, mostrou. A gente ficou que nem besta. Ninguém lembrou de contar o tempo. Daí, na mesma hora, minha tia, mãe dela, chegou.

– Puta merda!

– Imagina a cena: eu, um monte de moleque e minha prima, com um peito de fora. Minha tia ficou puta. Fez um baita escândalo. Deu o maior auê na família. Até hoje não posso chegar perto de nenhuma prima minha que já me olham como se eu fosse um tarado... Tá achando engraçado, é?

– Desculpe!

– Mas no fundo acho que minha prima gostou da experiência. No fundo ela curtiu saber que seus recém adquiridos atributos já eram notados. Claro, ela nunca me disse isso, mas não a vi chorando nem se arrependendo. Nunca mais falamos no assunto. A família rapidinho jogou o glacê em mais essa camada de esterco. Um brinde a essa família perfeita!

– Um brinde!

– Você fica linda sorrindo.

– Ai, adoro essa música! Vamos dançar?

– Claro.


Por Alexandre Heredia

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